Artigo publicado em 09/06/2013, última edição em 23/01/2024
Ampulárias
de diversas cores e padronagens. Fotos de Terri Bryant.
Genética
das variedades de cor na Pomacea
diffusa
Esta é a segunda metade de um artigo abordando as variedades de cores da Ampulária Pomacea diffusa. A primeira parte do artigo pode ser vista aqui .
Não existe nenhum trabalho científico formal descrevendo a herança
genética das Pomacea diffusa. O pouco
que se sabe é baseado em extrapolações de informações existentes de outros
ampularídeos, e a experiência prática de diversos aquaristas.
Em literatura científica, existem descrições de formas "amarelas" em três ampularídeos, Pomacea canaliculata, Marisa cornuarietis e Asolene platae. Em todas, o fenótipo obedece a uma herança recessiva, mendeliana simples, porém, com algumas diferenças interessantes:
Formas
albinas (“amarelas”) de P. canaliculata não têm pigmentos no corpo, olhos e concha, e, assim como o albinismo nos demais animais, obedece a uma herança recessiva do
tipo mendeliano simples. Sabe-se também que a presença de faixas na concha está
sob o controle de um gene de locus único e bem determinado no ampularídeo M. cornuarietis, com a variante sem
faixas (“dourada”) sendo recessiva (vale destacar que mesmo nesta variedade o animal possui pigmento no corpo). A herança da presença de faixas na concha é
totalmente independente da presença ou não de pigmento no corpo destes
caramujos (segunda lei de Mendel, a
da segregação), o mesmo tipo de herança deve ser
observado na Pomacea diffusa. Também é descrita uma forma dourada de A. platae, com o corpo despigmentado e sem as faixas na concha (exceto as faixas nas extremidades laterais). A herança também é mendeliana simples recessiva, porém, neste gênero, o mesmo gene codifica ambas características (corpo e concha).
Com raras exceções, toda a herança das cores na Pomacea diffusa parece obedecer a um modelo mendeliano simples, com
um par de genes para cada característica (cor do corpo, cor da concha, etc),
com uma das características dominante, e a outra recessiva (por exemplo, corpo
branco x corpo escuro). Cada uma destas características é independente uma da
outra, ou seja, a herança da cor do corpo independe da herança da cor da
concha, e assim por diante.
Uma exceção importante é o padrão de faixas na concha das Ampulárias. Como mencionado na primeira parte do artigo, as faixas são depósitos lineares de pigmento escuro nas camadas mais externas (junto ao ostraco) do hipostraco. A presença de faixas está condicionada à presença deste pigmento púrpura no hipostraco, que tem herança mendeliana simples. As faixas só podem ocorrer naqueles animais que expressam o gene do pigmento púrpura na concha. Porém, a intensidade e o padrão das faixas parece não ser mendeliano. Cruzando-se variedades sem faixa e com faixa, os filhotes que herdarem esta característica terão faixas semelhantes ao progenitor. Porém, cruzando duas variedades semelhantes mas com padrão diferentes de faixas, os filhotes terão um padrão intermediário de faixas. Por exemplo, cruzando-se dois Púrpura Listrados, um com faixas finas e outro com faixas grossas, os filhotes terão faixas de largura média.
Ainda sobre as faixas, uma observação que pode ser importante: Durante o desenvolvimento intracapsular dos filhotes de Pomacea e Asolene, já se formam duas faixas nas extremidades mais laterais da concha, subsutural e periumbilical. As demais faixas mediais só se foram após o nascimento do animal. Sabe-se que variedades douradas de Asolene platae ainda mantêm estas duas faixas laterais, confirmando que podem ter composição e codificação genética independente. Isto não foi observado ainda em Pomacea, mas estas duas faixas podem ter uma herança à parte.
Finalmente, existe uma misteriosa variedade de cor conhecida como Vermelho-Tomate, onde o pigmento vermelho se localiza no periostraco, e obedece uma herança de cores distinta. Um artigo específico desta variedade pode ser vista aqui.
Um conceito bastante básico que precisa ser lembrado é sobre genótipo e
fenótipo. O termo “fenótipo” é usado para designar as características
apresentadas por um indivíduo, sejam elas evidentes (cor da concha, por
exemplo), ou não (comportamento, produção de alguma enzima). O termo “genótipo”
refere-se à constituição genética
do indivíduo, ou seja, aos genes que ele possui. Geralmente é representada
por um par de letras para cada característica, em maiúsculo se dominante, e
minúsculo se recessiva. Por exemplo, uma Pomacea
com um pé escuro negro-azulado pode ser homozigota dominante (PP) ou heterozigota (Pp). A escolha da letra “P” foi arbitrária,
escolhi esta letra por representar a cor do “pé”.
Por exemplo,
cruzando-se dois indivíduos com o corpo escuro, um deles homozigoto e outro
heterozigoto (sem diferença perceptível ao exame visual), teremos todos os
filhotes escuros:
Porém,
cruzando dois heterozigotos (também idênticos aparentemente), teremos ¼ dos
filhotes com o corpo claro:
Este
raciocínio vale para cada uma das características, e elas terão heranças
independentes entre si. Lembrando que a presença de pigmentação amarela na
concha é dominante sobre a sua ausência, vamos imaginar o cruzamento de dois
pais heterozigotos de corpo escuro e concha amarela (Jade). Representaremos o
gene que codifica a cor amarela na concha com a letra “A”:
Veja que
9/16 serão idênticos aos pais (Jade), mas alguns serão homozigotos, e outros
heterozigotos (para cada uma das características, ou ambas). 3/16 terão o corpo
escuro e concha clara (Azul), um terço deles heterozigota para a cor do corpo.
3/16 terão o corpo claro e concha amarela (Dourada), um terço deles
heterozigota para a cor da concha. E 1/16 terão a concha e corpo claros
(Marfim).
Na prática,
existem três pares de genes (ou complexos de genes) que devem ser
levados em consideração, para prever o padrão de cores da prole de um
cruzamento de Pomacea diffusa:
- Um par para a presença do pigmento escuro do corpo
- Um par para a presença do pigmento escuro da concha
- Um par para a presença do pigmento amarelo da concha
Sempre, a presença do pigmento será dominante sobre a sua ausência. Um último aspecto que deve ser levado em consideração é a presença ou ausência de faixas. Falar sobre a presença de faixas só faz sentido nas variedades que têm pigmento púrpura nas conchas, desta forma, não será aplicável a todas as variedades. De qualquer forma, introduziremos uma última variável aqui:
- A herança para a presença de faixas (pigmento escuro)
Usar
somente estas quatro características nos parece bastante razoável. Somente com estes
quatro, obtemos 81 opções genotípicas e 12 fenotípicas.
Porém, se você quiser ser mais completo, a herança da cor nas duas
camadas da concha (ostraco e hipostraco) é independente. Isto sem falar
na herança envolvida nas manchas amareladas do corpo, espessura da concha, etc.
Basta imaginar o número adicional de opções que estes pares extras irão gerar,
para ficar claro que não é prático incluir rotineiramente todas estas variáveis.
Entretanto, é importante que tenhamos sempre em mente que há estas outras
opções de genes envolvidos na herança, o que pode explicar muitos dos
imprevistos nos cruzamentos, assim como algumas variedades mais raras de cor.
Mesmo levando-se tudo isto em consideração, alguns resultados de
cruzamentos são totalmente inesperados, por exemplo, com o “surgimento” de
padrões dominantes a partir de recessivos. Três exemplos abaixo, os dois primeiros observados por Donya
Quick, e o terceiro por Sydney Mariah Turner são:
Fotos dos caramujos com padrão inesperado de cor. Pai marfim e mãe dourada (primeira foto), quase todos os filhotes nasceram de cor dourada, exceto um único exemplar avelã (últimas imagens). Fotos cortesia de Sydney Mariah Turner.
A
coloração nos filhotes de Ampulárias
Os filhotes recém-nascidos das Ampulárias têm um aspecto diferente dos
adultos, nem todas as características que definem sua variedade são evidentes
ao nascer.
O único fato que você pode ter 100% de certeza logo após o nascimento é
se eles terão o corpo escuro ou não. Os filhotes nascem com o corpo
translúcido, sem a pigmentação negro-azulada que caracterizam as variedades de
corpo escuro. Entretanto, estes filhotes nascem com manchas escuras no corpo,
com um aspecto “marmóreo”, um mecanismo mimético. Estas manchas são compostas
de melanina, ou seja, somente estarão presentes nas variedades de corpo escuro.
Outro detalhe que pode ser visto é se os filhotes têm olhos escuros. Se dois
pequenos pontinhos escuros forem visíveis na região dos olhos, certamente este
filhote pertence a alguma variedade de corpo escuro.
Filhotes
recém-nascidos, alguns com pigmentação no corpo e outros sem. Fotos de Terri Bryant.
O primeiro aspecto que chama a atenção é o fato deles não terem faixas.
Ou seja, ao nascer, não vai ser possível diferenciar uma variedade com faixas
da sua correspondente sem faixas.
Close de alguns filhotes
com cerca de 1 semana de vida, mostrando os olhos escuros e manchas pigmentadas no corpo. Fotos Mírian Pacheco Nunes dos Santos.
A pigmentação amarela do hipostraco já é evidente ao nascer. Porém, a
amarela do ostraco pode se tornar evidente somente depois de crescer um pouco,
até cerca de 1,0 cm.
Filhotes recém-nascidos da variedade Dourada, note como eles já apresentam a coloração amarelada da concha (hipostraco). Note também que seus olhos não são visíveis, e não há manchas no corpo, indicando ausência de pigmentação no corpo. Foto de Cinthia Emerich.
Filhotes
da idades diferentes da variedade Azul, note as manchas pigmentadas escuras no corpo, e o padrão mais homogêneo na coloração do primeiro animal. Fotos de Chris Lukhaup.
Algumas
cores só ficam bem definidas em adultos. Filhotes podem parecer de uma cor, e
depois escurecerem para a cor verdadeira com a idade. Esta mudança é bem típica naquelas variedades que envolvem o Púrpura, nascem com uma cor mais clara até atingirem um tamanho
de 1,0~1,5 cm, e de repente começam a escurecer. As faixas se tornam mais
púrpuras, e a cor básica da concha pode mudar.
Em especial, diferenciar filhotes Jade de Selvagem no início é muito difícil, já que a única diferença entre eles é a presença ou ausência do pigmento púrpura. O mesmo vale para formas próximas ao Selvagem, como os Listrados Escuros, Vermelhos ou Verdes.
Filhotes com alguns minutos de vida. Foto de Ambriel Dawn.
Filhotes com alguns minutos de vida. Os filhotes estão marcados com as respectivas cores, os dois marcados com marrom e verde tornar-se-ão provavelmente Selvagens, note a sua coloração mais escura. Jades e Selvagens são muito parecidos no início. Note também o único Marfim. Dois pequenos filhotes estão marcados em púrpura claro, mais provavelemnte se tornarão Púrpuras, mas é necessário aguardar alguns dias para se ter certeza. Foto de Ambriel Dawn.
Os mesmos caramujos acima, depois de crescidos. Cerca de 4 meses após as primeiras fotos. Foto de Ambriel Dawn.
Um último alerta...
Um último
lembrete importante para quem está interessado em criações seletivas de
variedades de Ampulárias: Estes caramujos estocam sêmen após a cópula por um
período relativamente longo, há casos documentados em Pomacea canaliculata de armazenamento de sêmen por até 41 dias. E,
quando isto ocorre e há nova cópula, há mistura de sêmen com renovação gradual
do estoque do receptáculo seminal, com a possibilidade de múltipla paternidade
nos filhotes de uma mesma oviposição.
Quimeras
Existem alguns relatos bastante interessantes de quimerismo em Ampulárias, indivíduos com duas (ou mais) populações de células geneticamente diferentes compondo seu corpo, com origem em zigotos diferentes. Pode gerar indivíduos com partes do seu corpo com cores diferentes, até mesmo de sexos diferentes (ginandromorfismo). Veja um artigo específico sobre esta condição aqui.
Pomacea diffusa quimera junto a um indivíduo normal, foto cortesia de Kaylen Kokolus (Alberta, Canadá).
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Como mencionado no início da primeira parte do artigo, este texto teve como base a extensa pesquisa realizada por dois aquaristas, o primeiro é Stijn Ghesquiere, responsável
pelo portal applesnail.net , possivelmente o melhor banco de
dados de Ampulárias que existe na internet. O link para a página sobre genética está aqui . A segunda pesquisadora é Donya Quick, moderadora do fórum dedicado deste mesmo portal. O tópico fixo sobre genética pode ser visto aqui , e a sua página pessoal pode ser vista aqui . Finalmente, algumas informações bem interessantes foram extraídas do blog da aquarista Ambriel Dawn, que também permitiu o uso de suas fotos, sua página pode ser vista aqui .
Agradecimentos também aos colegas aquaristas norte-americanos Terri Bryant, Stephanie Maks, Linda von Hanneken, Sheila M, Devyn Paige Lugo, Rhonda Mullin, Maple Robert, Sydney Mariah Turner, Christian Michael, Tabetha Rousom e Victoria Nichols Reeves, à aquarista canadense Kaylen Kokolus, à aquarista australiana Ruby Scott-Young, aos aquaristas brasileiros Kola Rodrigues, Tacio Rios Vasconcelos, Aline Aparecida Santos, Mírian Pacheco Nunes dos Santos, Aline Bernal Stefani, Leonardo Carvalho, Rochetô Correa e Pedro Lopes, também a Bill Frank ( Jacksonville Shell Club ), Pamela Rambo ( I Love Shelling ) e aos colaboradores do iNaturalist Adriano Maciel e Brigitte Tombers (Suíça) pela cessão das fotos para o artigo.
As
fotografias
de Walther Ishikawa, Cinthia Emerich, Stijn Ghesquiere e Brigitte Tombers (iNaturalist) estão licenciadas sob
uma Licença Creative Commons. As demais fotos têm seu "copyright" pertencendo aos
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