Aegla microphthalma, macho fixado, faltando alguns apêndices. Note os pedúnculos oculares
bastante reduzidos, e a ausência de córnea. Imagem gentilmente cedida pelo Prof. Dr. Sergio Luiz de Siqueira Bueno
(LEEUSP – Laboratório de Estudo dos Eglídeos da USP).
Aeglas Cavernícolas
Talvez os crustáceos cavernícolas mais conhecidos sejam os
Aeglas habitantes das cavernas do
complexo PETAR (Parque Estadual
Turístico do Alto Ribeira) e PEI (Intervales) que se localiza no sul do
estado de São Paulo. Aeglas são
bastante comuns nos riachos da região, e quatro destas espécies são encontradas
tanto em ambientes epígeos quanto em cavernas (A. paulensis, A. strinatii, A. marginata
e A. schmitti). Quatro espécies são
troglóbias (restritas ao ambiente cavernícola), com características
troglomórficas bem evidentes, como despigmentação geral do corpo, dimensões
reduzidas das córneas e dos pedúnculos oculares, e maior tamanho dos apêndices
locomotores em comparação com as espécies de ambientes epígeos. Mais três espécies foram recentemente descobertas (2010), no Núcleo Bulhas d´Água (PEI), mas ainda não descritas formalmente.
O estado atual de conservação de todas as espécies
troglóbias é altamente preocupante, em vista do declínio populacional
observado no passado recente, do alto endemismo da espécie que é expresso pela
reduzida área de distribuição limitada à localidade-tipo e por se tratar de
ambiente singular e frágil (hábitat subterrâneo), cuja comunidade animal
depende fortemente de aporte de nutrientes de origem externa (meio epígeo). Três
espécies constam no “Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção” (2014)
da IUCN/MMA como espécies criticamente em perigo (CR - Critically Endangered). As outras espécies não constam nesta lista simplesmente por terem sido descritas apos sua publicação.
Aegla microphthalma Bond-Buckup & Buckup, 1994
Aegla microphthalma, foto de Bruno Fernandes Takano.
Esta espécie apresenta características troglomórficas
bastante pronunciadas, sendo conhecida como “Égla Branca” devido à acentuada despigmentação
geral do corpo. Mostra também uma redução mais acentuada dos pedúnculos
oculares, e córneas ausentes (reduzidas nas duas outras espécies), daí seu nome. Seu nome significa "olhos pequenos" em grego.
Apresenta distribuição muito reduzida, com ocorrência
registrada apenas para a Caverna Santana, no PETAR. Os registros documentados
de ocorrência da espécie no interior desta caverna são conhecidos apenas nas
áreas mais afastadas da entrada e de difícil acesso, um trabalho em 1994 estimou
uma densidade de 0,12 indivíduos/m². Nos últimos anos, algumas tentativas de
localizar exemplares da espécie mediante o emprego de armadilhas e de inspeção
visual com auxílio de lanternas não foram bem sucedidas. Em 2007, apenas um
exemplar foi amostrado e outro avistado no leito do rio, enquanto que em 2009
nenhum exemplar chegou a ser capturado ou mesmo avistado.
Uma ameaça adicional a esta espécie é a colonização da
Caverna Santana por camarões Macrobrachium
sp. Já na re-avaliação de 1998 (para o Estado de SP), o estado de conservação de Aegla microphthalma
foi re-avaliado como espécie criticamente ameaçada. Recentemente (2009, 2012 e 2014), esta avaliação se mantém, com base nos critérios
B2ab(iii) e B2ab(iii,iv) preconizados pela IUCN. Soma-se claramente o critério A4ae (redução populacional contínua). Das quatro espécies, parece ser a mais ameaçada de extinção.
Aegla cavernicola Turkay, 1972
Casal de Aegla cavernicola, fotos de Bruno Fernandes Takano e Kate Pereira Maia.
A ocorrência desta espécie troglóbia está registrada
apenas para a localidade-tipo, representada pelas cavernas contíguas do Sistema
Areias, localizado no PETAR. Seu nome significa "habitante de cavernas" em grego.
Aegla cavernicola representa a primeira espécie
descrita de eglídeo adaptada exclusivamente à vida em ambiente subterrâneo de
caverna. A biologia da espécie é praticamente desconhecida. Sabe-se
que a espécie exibe hábitos crípticos que lembram as espécies de ambientes
epígeos e que o pico reprodutivo ocorre nos meses secos e frios do inverno. Um
trabalho em 1994 estimou uma densidade de 2,34 indivíduos/m² na caverna Areias
de Baixo, porém outro autor em 2007 menciona densidades entre 1 e 2
indivíduos/m² também na mesma caverna. Mais recentemente (2009) autores
relataram dificuldades em amostrar exemplares desta espécie (somente 13 espécimes avistados), mencionando que a
distribuição de A. cavernicola, que outrora ocorria desde próximo da
entrada (sumidouro) da Caverna Areias de Baixo, atualmente restringe-se a um trecho
após a transposição de um sifão localizado aproximadamente a 700 metros da
entrada da caverna. Recentemente (2012 e 2014), o estado de conservação de Aegla cavernicola foi re-avaliado pelo MMA como espécie criticamente ameaçada, com base nos critérios
B1ab(iii,iv) + ab(iii,iv) preconizados pela IUCN.
Aegla leptochela Bond-Buckup & Buckup, 1994
É espécie troglóbia, com distribuição conhecida restrita à
localidade-tipo, representada pela Caverna dos Paiva, localizada no Parque
Estadual Intervales (PEI), município de Iporanga, SP, onde ocorre em simpatria
com a espécie troglófila Aegla marginata. Possui coloração alaranjada, especialmente nos pereiópodos, ao contrário das duas espécies troglóbias acima. Seu nome significa "garras delgadas" em grego.
Um trabalho realizado em 1994 estimou uma densidade de
1,61 ind./m² de Aegla leptochela, mencionando ainda que este valor era
similar ao da subpopulação de Aegla marginata no interior da caverna.
Entretanto, em estimativas realizadas mais recentemente (2009), autores observaram
declínio no tamanho populacional das duas espécies, tendo este sido mais
expressivo na espécie troglóbia Aegla leptochela, resultando em uma
nítida dominância numérica em favor da espécie troglófila, Aegla marginata. Recentemente (2012 e 2014), o estado de conservação de Aegla leptochela foi re-avaliado pelo MMA como espécie criticamente ameaçada, com base nos critérios
B2ab(iii,iv) preconizados pela IUCN.
Aegla charon Bueno & Moraes, 2017
Aegla charon, uma das duas novas espécies do Núcleo Bulhas d´Água, note suas córneas reduzidas e pernas longas. Imagens cedidas por Alexandre Iscoti Camargo.
É espécie troglóbia recentemente descrita (2017), com distribuição conhecida restrita à
localidade-tipo, o "Lago Subterrâneo" núcleo Bulhas D´Água, localizada no Parque
Estadual Intervales (PEI), município de Guapiara, SP. É a única espécie subterrânea conhecida de Aegla a habitar um ambiente lacustre. Seu nome vem do personagem mítico grego Charon, o barqueiro do submundo que transporta a alma dos mortos através do Rio Styx.
A área pigmentada da córnea motra-se somente discretamente reduzida, semelhante ao A. leptochela. Possui também hipopigmentação menos marcada no seu corpo. Tem uma característica bastante marcante, que é a presença de pleópodes no abdomen do macho, sendo que quase todas as demais espécies de Aegla não as possuem (a única exceção é a espécie epígea A. perobae).
Embora não haja ainda uma avaliação formal pelo MMA, os autores do artigo sugerem que o estado de conservação de Aegla charon seja também considerado como espécie criticamente ameaçada, com base nos critérios
B2ab(iii) preconizados pela IUCN. A área de ocupação da espécie é estimada em menos de 10km², de habitat frágil.
Caverna no Núcleo Bulhas d´Água (Intervales), imagem gentilmente cedida pelo espeleólogo Alexandre Iscoti Camargo.
Outros
Crustáceos Decápodes
Embora outros decápodes de água doce (camarões,
caranguejos, etc.) sejam troglóbios relativamente comuns em outras partes do
mundo, no Brasil foi registrado, até o momento, um único caso de população com
algum troglomorfismo. Trata-se de um camarão Macrobrachium sp., que apresentava despigmentação ocular em caverna
arenítica de Altamira, no Pará, detectado em 1991. Alguns Euryrhynchus também são comumente encontrados em cavernas, mas sem
adaptações morfológicas evidentes.
Dois exemplos de outros decápodes troglóbios de outros países, Cerberusa caeca,
fotografado no Deer Cave, Crab Inlet Passage, Parque Nacional Gunung
Mulu, em Sarawak, Malásia. Lagostim
troglóbio Orconectes pellucidus, fotografado no Fisher Ridge Cave,
Hart County, em Kentucky, EUA. Ambas fotos gentilmente cedidas por Alan Cressler.
Bibliografia:
- Bond-Buckup G. Família Aeglidae. In: Melo GAS. Manual de Identificação dos Crustacea
Decapoda de água doce do Brasil. São Paulo: Editora Loyola, 2003.
- Machado ABM, Drummond GM, Paglia AP.
Livro vermelho da fauna brasileira ameaçada de extinção - 1.ed. -
Brasília, DF : MMA; Belo Horizonte, MG : Fundação Biodiversitas, 2008.
2v. (1420 p.): il. - (Biodiversidade ; 19).
- Subirá RJ, Souza ECF, Guidorizzi CE, Almeida MP, Almeida
JB, Martins DS. Avaliação Científica do Risco de Extinção da Fauna Brasileira –
Resultados Alcançados em 2012. Biodiversidade
Brasileira, 2(2), 17-24, 2012.
- Hobbs Jr. HH, Hobbs III HH, Daniel MA. 1977. A review of the
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- Fernandes CS. Morfometria geométrica de populações subterrâneas e epígeas dos caranguejos de água doce
do gênero Aegla Leach 1820,
(Crustacea: Anomura: Aeglidae) no Vale do Ribeira, Iporanga, SP. Dissertação (Mestre em Ciências Biológicas, área de Ecologia.
Curso de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais PPGERN) – Universidade Federal
de São Carlos. São Carlos, SP, 2011.
- Maia KP, Bueno SLS, Trajano E.
Ecologia populacional e conservação de eglídeos (Crustacea: Decapoda: Aeglidae)
em cavernas da área cárstica do Alto Ribeira, em São Paulo. Revista da Biologia (2013) 10(02): 40–45.
- http://www.icmbio.gov.br/portal/biodiversidade/fauna-brasileira/
- http://bioespeleoleila.blogspot.com.br/
- http://editoramarcelonotare.com/page_34.html
- Bueno SLS,
Camargo AL, Moraes JCB. A new species of stygobitic aeglid from lentic
subterranean waters in southeastern Brazil, with an unusual morphological
trait: short pleopods in adult males. Nauplius. 2017; 25: e201700021.
- Souza LA,
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Senna AR.
Amphibious
Shelter-Builder Oniscidea Species from the New World with Description
of a New Subfamily, a New Genus and a New Species from Brazilian Cave
(Isopoda, Synocheta, Styloniscidae). PLoS
One. 2015; 10(5): e0115021.
- Santos S, Bond-Buckup G, Gonçalves AS,
Bartholomei-Santos ML, Buckup L, Jara CG. Diversity and conservation status of
Aegla spp. (Anomura, Aeglidae): an update. Nauplius. 2017; 25: e2017011.
Agradecimentos especiais ao Prof. Dr. Sergio Luiz de Siqueira Bueno (LEEUSP – Laboratório de Estudo dos Eglídeos da USP), pela cessão das fotos para o artigo. Parte do artigo foi adaptado das páginas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, vinculado ao MMA, ao qual agradecemos a permissão. Os textos originais deste site foram escritos pelo Prof. Sérgio Bueno, agradecemos também a Felipe Cohen, Bruno Takano e Kate Pereira Maia, autores das fotos originais. Agradecimentos também ao fotógrafo norte-americano Alan Cressler, e ao bioespeleólogo e fotógrafo Alexandre Iscoti Camargo por permitir o uso das imagens.
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