Pomacea (Pomacea) canaliculata
(Lamarck, 1804)
Identidade da Pomacea
canaliculata
Historicamente, há uma grande confusão na
identificação de espécies de Pomacea.
Mais de 300 espécies foram descritas no gênero desde 1758, entretanto, a
validade de várias destas espécies é questionada, hoje se aceita oficialmente
cerca de 50 espécies, mas muitos autores acreditam que o número real deva ser
ainda menor. O problema da taxonomia tradicional das Pomacea é o fato da descrição de muitas espécies se basearem somente
em detalhes morfológicos de conchas, não raro, da análise de um pequeno número
de exemplares. Distribuições geográficas também não eram levadas em
consideração, ignorando variações intraespecíficas.
Desde então, muita coisa mudou. Em especial, houve
uma reviravolta dramática na própria metodologia da Sistemática, que evoluiu de
uma disciplina preocupada com a classificação dos organismos para uma abordando
a questão da reconstrução de histórias evolutivas das espécies. Para tal,
ferramentas genéticas e moleculares têm sido bastante empregadas como um
valioso aliado de análises morfológicas e biogeográficas, para a definição de
espécies. A própria análise morfológica também foi refinada, com um estudo mais
cuidadoso da sua anatomia interna, além de cruzamentos experimentais, provas
imunológicas, etc.
Hoje se sabe com segurança que as Pomacea são monofiléticas, ou seja,
possuem uma origem evolutiva comum. Esta nova abordagem cladística divide as Pomacea em alguns ramos (clados) e
grupos, separando-os de acordo com sua ancestralidade. E aqui começaram a
surgir surpresas bastante interessantes.
Nas classificações mais tradicionais, usa-se com
alguma frequência o termo "Complexo canaliculata", um grupo de espécies
de ampularídeos que tem traços anatômicos em comum, em especial o aspecto da
sua concha, com giros separados por uma sutura profunda e indentada, na forma
de canais profundos (daí seu nome), muitas vezes sendo bastante difícil a
distinção das espécies dentro deste grupo. A Pomacea canaliculata é,
obviamente, a espécie arquetípica deste grupo. Das espécies brasileiras, fazem
parte do "complexo canaliculata" a P. lineata,
P. maculata, P. dolioides e P. haustrum, além da P. canaliculata. São animais
conhecidos como “Ampulárias
Canaladas” (channeled apple snails), ou ainda
como “Aruás” no Brasil. Vale lembrar que muitos pesquisadores brasileiros ainda questiona a validade de algumas espécies dentro do complexo, em especial a P. insularum (atualmente P. maculata), considerando-a um sinônimo menor do P. canaliculata.
Na nova classificação cladística, a Pomacea
canaliculata também é uma espécie modelo, representativa do clado canaliculata-insularum.
Uma descoberta interessante é que nem todas as espécies do "complexo
canaliculata" fazem parte deste clado. A Pomacea aff. haustrum, por
exemplo, pertence ao clado diffusa (bridgesii). Ou seja, é mais próxima do P. diffusa (a espécie mais comum em aquarismo), apesar de ser muito
mais parecida com o P. canaliculata.
O ponto fundamental é este: espécies muito parecidas podem ser bastante
afastadas filogeneticamente (canaliculata
x aff. haustrum), e espécies
morfologicamente diferentes podem ser próximas (aff. haustrum x diffusa),
mostrando como a análise morfológica isolada é falha na diferenciação das
espécies.
Em meio a este grande turbilhão de novas
descobertas está o Pomacea canaliculata...
Todos os trabalhos científicos prévios e
levantamentos populacionais consideravam esta Ampulária como sendo uma espécie
de ampla distribuição pela América do Sul (veja mapa A), sendo encontrado na
porção inferior da Bacia Amazônica e Bacia Platina, no Sudoeste do Brasil,
Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Entretanto, é bom lembrar que estes
mapas foram elaborados considerando o P.
insularum (atualmente P. maculata) e algumas outras espécies como sendo sinônimos do P. canaliculata.
Nos últimos anos, entre pesquisadores estrangeiros,
tem-se dado muito destaque à correta identificação do Pomacea canaliculata (juntamente com a P. maculata),
com várias pesquisas estudando marcadores genéticos e moleculares, por serem
estas as espécies de Ampulárias sul-americanas que ocorrem como espécies
invasoras em vários outros países. A P.
canaliculata é encontrada como invasora e pestes agrícolas em diversos
países asiáticos (onde é a espécie invasora mais prevalente) e Sul dos Estados Unidos. Também já foi detectada na Austrália, África do Sul, Chile, México, Espanha, Sibéria, ilhas havaianas e caribenhas. Mesmo nos países onde ela ocorre (como Argentina), trabalhos recentes mostram uma expansão na sua área de ocorrência. Especialistas a
consideram uma das 100 piores espécies animais invasoras do mundo.
Segundo estes autores, já é possível um diagnóstico
definitivo desta espécie, baseada somente em marcadores moleculares. E segundo
estes mesmos autores, a validade do P.
insularum como espécie distinta do P.
canaliculata já está estabelecida, novamente baseado em marcadores genéticos
(gene mitocondrial citocromo oxidade I – COI), contrariando a opinião corrente
de pesquisadores brasileiros.
Um interessante artigo (Hayes KA et al.
2012) faz uma revisão do P. canaliculata
à luz destas novas descobertas, propondo uma re-definição desta espécie,
inclusive com um neótipo (um novo holótipo, já que o espécime-tipo original foi
destruído). Este mesmo artigo reforça que o P.
insularum é uma espécie distinta do P.
canaliculata, e não um sinônimo. Nesta nova abordagem, a Pomacea canaliculata é considerada como
uma Ampulária de distribuição bastante restrita, encontrada somente na bacia do
Baixo Paraná, no Uruguai e Bacia do La Plata, Argentina,
possivelmente no Alto Paraná, sendo até questionável a sua presença em território brasileiro. Ou seja, bastante distinta da definição e biogeografia ampla do que é
considerado P. canaliculata pelos
malacologistas brasileiros. Entretanto, é importante a ressalva de que estes
novos mapas não foram elaborados analisando espécimes regionais dos estados do
Sul, não sendo totalmente aceitos pela comunidade malacológica brasileira:
“...é a nossa opinião crítica que ainda é muito cedo para se pensar em
fazer mudanças nos quadros dos inventários malacofaunísticos regionais a partir
da referida publicação, toda vez que só através do devido exame de espécimes
procedentes especificamente desses espaços geográficos poderá se responder a
veracidade ou não dessa hipótese ventilada.” (Agudo-Padrón AI, comunicação pessoal)
Recentemente, em duas ocasiões, pude comprovar pessoalmente que a distribuição do P. canaliculata é mais extensa do que o proposto pelo mapa acima do Dr. Hayes. Fotografei cachos de ovos às margens do Lago Guaíba (Porto Alegre, RS), que claramente eram de duas espécies distintas, P. canaliculata e P. maculata. Haviam ovos de maiores dimensões, que não correspondiam ao descrito para o P. maculata. Os adultos destas duas espécies são idênticos, mas os ovos são diferentes. E, no Rio Tietê, em Barra Bonita (SP), fotografei também ovos grandes que correspondiam aos descritos para o P. canaliculata. Existem outras espécies com conchas e ovos idênticos ao P. canaliculata (como o P. lineata), mas não nestas localidades. Concluindo, pelo menos em RS e SP, ocorre o Pomacea canaliculata. Lembrando também que, para a elaboração do mapa do Dr. Hayes, não foram sampleados espécimes nestes dois estados.
Lago Guaíba, Porto Alegre, RS. Cachos de ovos de Pomacea canaliculata
(os dois acima) e Pomacea maculata (dois abaixo). Na segunda imagem, uma concha achada nas margens do lago, impossível diferenciar entre as duas espécies somente pela concha. Conchas de Mexilhão Dourado podem ser vistas também. Fotos de Walther Ishikawa.
Rio Tietê, Barra Bonita, SP. Cacho de ovos de Pomacea canaliculata
na primeira imagem, e um animal vivo na segunda. Fotos de Walther Ishikawa.
Acima, mapas de distribuição geográfica de Pomacea canaliculata no Brasil. O mapa "A" mostra a distribuição "tradicional" da espécie, ampla, aceita pela comunidade malacológica brasileira. O mapa "B" é a distribuição da espécie revista por Hayes KA 2012. Veja detalhes no texto. Imagem
original Google Maps; dados de Simone LRL 2004 e 2006, e Agudo-Padrón AI 2008, e Hayes KA 2012.
Neste mesmo artigo, a P. insularum e P. gigas
são considerados sinônimos menores de P.
maculata. Neste trabalho, foram publicados mapas preliminares de
distribuição destas duas espécies, mapas aproximados baseados em coletas de
espécimes (no Brasil, espécimes de MT, MS, GO, AM, TO, RJ e DF – dados do
trabalho atual e anterior do mesmo grupo), e inferências baseadas em outros
trabalhos e na extensão das bacias hidrográficas. Note que o mapa “tradicional”
da espécie (A) corresponde grosseiramente ao mapa (B) somado ao mapa do P. maculata (vide artigo aqui ), o que é
esperado, já que o mapa A não considera o P.
insularum (incluído no P. maculata)
como espécie válida.
Trabalhos recentes demonstram extensa hibridização entre estas duas espécies, tanto na natureza (na distribuição nativa e invasora) quanto em laboratório. Estima-se que 30% dos indivíduos nativos do Brasil e Uruguai mostrem algum grau de hibridização, especialmente onde as duas espécies são encontradas, no Uruguai (chegando a 50% em alguns locais). Populações híbridas chinesas mostram inclusive um padrão intermediário no aspecto dos ovos e recém-nascidos.
A vasta maioria das Ampulárias vendidas no comércio de aquarismo é da espécie Pomacea diffusa, um animal que não se alimenta de plantas
ornamentais. Ampulárias do “complexo canaliculata”
são encontradas mais raramente, em geral são animais selvagens coletados na
natureza. Mas a distinção com o P. diffusa é importante, devido ao
apetite voraz dos animais do “complexo canaliculata”,
destruindo plantas ornamentais. A forma mais simples de se fazer esta distinção
é através de alguns detalhes das conchas, como na figura abaixo:
Ilustrações de Stijn Ghesquiere.
Concha: A concha de todas as Ampulárias do “complexo
canaliculata” é muito parecida, indistinguíveis segundo a maioria dos autores. Tem
forma globosa e relativamente pesada (especialmente em caramujos mais velhos),
com um ápice baixo. Os cinco ou seis giros são separados por uma sutura
profunda e indentada (daí o nome canaliculata, de "canal"). A
abertura da concha é ampla e oval para arredondada, por vezes levemente
refletida. Sabe-se que machos têm aberturas mais arredondadas do que as fêmeas.
O umbilicus é amplo e profundo. A cor é amarelo-marrom para amarelo-vivo com um
padrão de faixas escuras espiraladas.
Pomacea canaliculata,
variedade com faixas. Imagem
cedida por Bill Frank.
O tamanho destes caramujos é de até 60 mm de altura. Alguns autores descrevem que a concha do P. canaliculata possui ombros mais arredondados do que o da P. maculata, e que o lábio interno da
abertura da concha não é pigmentado (no P.
maculata é amarelo ao laranja-avermelhado). A distinção é mais fácil em
animais recém-nascidos, filhotes de P.
canaliculata são maiores (com
1 dia de vida medem 2,8 mm de altura), e com maior espiralização nas conchas,
cerca de duas voltas. O aspecto
geral da concha é muito semelhante ao da P. lineata, exceto pelo fato da
P. canaliculata possuir suturas mais profundas e forma mais globosa.
Filhotes de algumas populações possuem conchas com um aspecto estriado, com faixas finas e elevadas, ao longo do sentido do crescimento da concha, formada por fileiras paralelas de finos pelos no periostraco. A função destes pelos é desconhecida.
Pomacea canaliculata, fotografado na Flórida como espécie invasora. Este espécime é excepcionalmente grande, medindo cerca de 90,8 mm, e mostra de forma bastante didática suas suturas profundamente canaladas. Imagem
cedida por Bill Frank.
Pomacea canaliculata, fotografado em uma lagoa em Blumenau, SC. Imagem
cedida por Luís Adriano Funez.
Pomacea canaliculata, foto de Stijn
Ghesquiere.
Opérculo: O opérculo tem uma espessura
média e um aspecto córneo. Sua estrutura é concêntrica com o núcleo próximo do
centro da concha. A cor varia de tons claros (em animais jovens) até marrom
escuro. O opérculo pode ser retraído na abertura da concha. Comparando-o com a P. maculata, esta espécie possui o opérculo mais flexível, permitindo um fechamento mais hermético da abertura da concha, possivelmente uma adaptação à vida em locais que passam por dessecação periódica.
Corpo: A cor varia de indivíduos completamente amarelos ou
verdes (formas criadas em cativeiro) até marrons com ou sem faixas escuras
espiraladas (forma selvagem). Quando em repouso, os tentáculos ficam enrolados
sobre a concha.
Pomacea canaliculata, duas variedades de coloração do corpo e concha. Ambos coletados na Flórida, EUA. Fotos de Bill Frank. Pomacea canaliculata, variedade amarela. Fotos de Bill Frank.
Típicas suturas profundas e indentadas do Pomacea
canaliculata, foto de Stijn Ghesquiere.
Pomacea canaliculata, foto de Stijn
Ghesquiere.
Variedades de cor selecionadas em aquários de Pomacea canaliculata. Fotos de Terri Bryant.
Para a segunda parte do artigo, com referências bibliográficas e créditos fotográficos, clique aqui
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