Artigo publicado em 02/08/2015, última edição em 24/07/2023
Bloodworms - Mosquitos Quironomídeos
Terceira parte do artigo abordando os Dípteros Quironomídeos. A segunda parte pode ser vista aqui.
Enxames
Embora não sejam hematófagos, quironomídeos não são totalmente inócuos
aos seres humanos. Em algumas localidades, os adultos emergem da pupa
simultaneamente, formando grandes enxames, quando podem até representar perigo
a animais e humanos, entrando em olhos, boca e nariz, pelo risco de asfixia. Não
se sabe qual é o gatilho desta metamorfose sincronizada. À distância, parece
uma coluna de fumaça emergindo da água. Pode prejudicar a visibilidade ao
dirigir. Suas fezes são volumosas, deixando prédios e residências tão sujas que
necessitam de nova pintura. Após a reprodução, morrem aos milhões, seus corpos
se acumulando nas ruas, e entupindo aparelhos e ar condicionado.
Por outro lado, quando adultos emergem no Lago Victória, na África, são
capturados com redes e usados na alimentação humana, na forma de bolos. É uma
importante fonte de proteínas para a população local.
Grande
enxame de Quironomídeos, fotografado na margem norte do Lago Erie,
próximo a Port Burwell, Ontario, Canadá. A segunda imagem mostra os
insetos em magnificação. Fotos de Bruce Bolin.
Enxame de Quironomídeos fotografado em Norfolk, Inglaterra. Foto de Paul Bunyard.
Alergia a Bloodworm
Desde a década de 50, reações de hipersensibilidade a Quironomídeos têm sido relatadas
em diversos países, como Japão, Sudão, EUA, Egito, Suécia e Itália, em locais
onde há grande densidade destes insetos próximos a corpos d´água. Geralmente
são alergias respiratórias, com quadros de rinoconjuntivite e asma,
desencadeadas por diminutos fragmentos e partículas desprendidas por estes
insetos no processo de metamorfose de pupa para o adulto. Provavelmente o alérgeno é a hemoglobina de baixo peso molecular.
Porém, com
o crescente uso de formas industrializadas de Quironomídeos como alimento para
peixes, existem relatos de reações alérgicas em humanos, desencadeadas por bloodworms liofilizados ou congelados.
São mais comuns em pessoas que manipulam estes produtos com maior regularidade,
como funcionários de petshops e fábricas de alimentos, mas pode ocorrer com
qualquer aquarista. Algumas reações podem ser graves (há um relato de angioedema
na Espanha), necessitando tratamento hospitalar. Havendo sintomas
respiratórios, em olhos e vias aéreas superiores, ou ainda, reações alérgicas
cutâneas nas mãos após contato com estes alimentos, é prudente procurar
atendimento médico para investigar a possibilidade de alergia.
Alimentos
vivos
É muito comum Bloodworms serem encontrados em aquários em maturação, não
há problema algum em fornecê-los aos nossos peixes como alimentos vivos, após
cuidadosa limpeza. Deve-se agitar vigorosamente a água em torno das suas tocas,
a fim de desfazê-las (geralmente elas são frágeis, se desfazendo facilmente),
para então coa-las em uma tela, como tule ou uma rede de aquário de malha mais
fina. Em armadilhas de mosquitos (veja o artigo aqui),é muito comum a sua presença juntamente com os culicídeos.
Outro lembrete importante (válido
para qualquer alimento vivo), não se deve utilizar nenhum animal coletado na
natureza (como lagoas) como alimento, estes sim podem ser vetores de
importantes doenças para os peixes, como vermes trematóides e bactérias.
Vivendo em ambientes
extremos
Quironomídeos são um grupo bastante heterogêneo, com espécies com larvas
aquáticas, terrestres e até marinhas. Muito resistentes à poluição, algumas espécies
se especializaram em locais bastante inóspitos, talvez mais extremos do que
qualquer outro inseto aquático:
Calor: Algumas espécies neozelandesas
habitam barrancos associados a fontes geotermais de regiões vulcânicas, onde a
temperatura pode atingir 43º C, como a Ephydrella
thermarum, Chironomus cylindricus
e uma espécie de Polypedilum.
Polypedilum vanderplanki: Chamado de “Sleeping Chironomid”, esta espécie é
encontrada em regiões semi-áridas africanas, como na Nigéria e Uganda. Suas
larvas vivem no lodo de lagoas temporárias e depressões rochosas que
frequentemente sofrem dessecação completa. Quando isto ocorre, a larva entra em
animação suspensa e desidrata até chegar a somente 3% de composição de água.
Nestas condições, a larva é extremamente resistente a condições ambientais
inóspitas, podendo sobreviver ao frio de Hélio líquido (-270º C) e calor de
102º C, altos índices de radiação gama (7000 gray) e exposição ao vácuo
espacial por mais de um ano. Poucos metazoários conseguem esta desidratação
quase completa (anidrobiose). Quando reidratados em imersão em água, retomam
suas atividades. Em laboratório, foi demonstrado que estas larvas podem
sobreviver a pelo menos 10 ciclos de desidratação e reidratação. O recorde é
uma larva que foi revivida após estocada em sedimento seco por 17 anos.
Polypedilum vanderplanki, ciclos de desidratação e rehidratação em laboratório. Foto extraída de Cornette R, et al. 2010 (veja bibliografia), Licença Creative Commons.
Vídeo de um Polypedilum vanderplanki, rehidratação e reanimação. Vídeo gentilmente cedido pela empresa de imagens de microscopia japonesa Grendel. Veja seu canal YouTube aqui. O link para o site do Grendel está ao final do artigo.
Fitotelmata e Habitats Madículos: Muitos quironomídeos são
encontrados em bolsões de água de Bromélias, no Brasil são comuns as espécies
dos gêneros Polypedilum e Monopelopia. Na América do Norte, a
espécie Metriocnemus knabi vive nos
reservatórios de água das plantas carnívoras do gênero Sarracenia, por um mecanismo não muito claro, impedindo de serem digeridas
pela planta. Ambientes madículos também são habitats ocupados por uma grande variedade de quironomídeos, além da subfamília Podonominae que é típica destes locais, levantamentos revelam um grande número de espécies das três outras subfamílias não-marinhas.
Larvas das subfamílias Tanypodinae coletadas em fitotelma de bromélia, em Campos de Jordão (SP). Foto de Walther Ishikawa.
Grande variedade de insetos coletada em mabiente madículo em Vila Velha, ES. Além de um Naididae, um Lepidoptera, alguns Hydrophilidae e grande número de Ceratopogonidae, note a presença de muitas larvas de quironomídeos, principalmente da subfamília Orthocladiinae. Foto cortesia de Flávio Mendes.
Profundidade:Sergentia koschowi vive na lama no fundo do Lago Baikal na Rússia,
a uma profundidade de 1360 m. Tem olhos rudimentares, e uma cor forte vermelha,
devido à hemoglobina.
Espécies terrestres: Larvas de algumas espécies são totalmente
terrestres, vivendo em solo úmido e vegetação. A espécie australiana Camptocladius stercorarius especializou-se
em viver exclusivamente em fezes de bovinos. Outra espécie, Eretmoptera murphyi, vive em musgo e
turfa úmida. Esta espécie é interessante, é nativa da zona subantártica na Ilha
Geórgia do Sul, os adultos têm asas rudimentares, sem capacidade de voo. É um dos
dois únicos invertebrados terrestres introduzidos na Antártida, onde está bem
estabelecido, e expandindo sua distribuição.
Eretmoptera murphyi, fotografado em Prince Olav Harbour, Ilhas Geórgia do Sul. Foto de Roger S. Key.
Frio: Outra espécie áptera é encontrada
no próprio continente Antártico, Belgica
antarctica, sendo a única espécie de inseto nativo do continente, e a maior
espécie animal totalmente terrestre, apesar de medir somente 6 mm (sua larva, o
inseto adulto mede somente 3 mm). Como dito, todo seu ciclo de vida é
terrestre, vivendo em algas, musgo e no solo em torno das raízes de gramíneas.
As larvas também são atraídas por solos ricos em nutrientes associados a ninhos
e colônias reprodutoras de Pinguins, Aves Marítimas e Focas. Podem sobreviver a
congelamento e desidratação, imersão em água doce (água de degelo) e água
salgada (trazida por tempestades). Podem até viver sem oxigênio por um mês, o
que acontece quando fica enterrado em gelo, ou em guano de Pinguins, repleto de
bactérias que depletam todo o oxigênio disponível. Tanto as larvas quanto os
adultos têm uma coloração escura, para maximizar a absorção de calor solar,
assim como para proteger da radiação ultravioleta. Recentemente seu genoma foi
sequenciado, com um resultado surpreendente, um genoma extremamente curto, de
somente 99 pares de megabases, o menor registrado dentre os insetos (como
comparação, o Aedes aegypti tem 1.380
pares de megabases), com um padrão que distribuição de genes que sugere adaptações
à sobrevivência neste ambiente inóspito.
Belgica antartica, a primeira foto mostra um casal em cópula, foto de Tasteofcrayons (Wikimedia Commons). A segunda foto mostra um grupo de larvas terrestres, foto cortesia de Richard E. Lee Jr.
No hemisfério norte, larvas de algumas espécies europeias como Diamesa bertrami e Orthocladius frigidus se especializaram em viver em córregos
alimentados por água de degelo glacial, com temperaturas pouco acima do 0º C.
Alimentam-se de partículas orgânicas liberadas pelo degelo, ou cianobactérias
que colonizam estes canais. Hibernam em casulos de seda, e suportam
congelamento. Estes períodos de diapausa levam a uma expectativa de vida
bastante longa, podendo chegar a 7 anos de desenvolvimento larval no Chironomus tardus. Substâncias na
hemolinfa permitem a algumas espécies não congelarem mesmo em temperaturas
extremamente baixas. Há registros de Diamesia
adultos no Himalaia ativos a -16º C.
Diamesa mendotae macho, caminhando na neve em Minnesota, EUA. À direita, Diamesa leona,
fêmea braquíptera abaixo de camada de gelo no Rio Arkansas, Volorado,
EUA. Fotos da Universidade de Minnesota. A página original pode ser
vista aqui.
Espécies marinhas: Poucos insetos conseguem viver
no mar, e novamente, os quironomídeos estão representados neste grupo. As
larvas de diversas espécies conseguem se desenvolver em ambientes altamente
salinos, enquanto outras vivem em costões rochosos na zona da maré. No Brasil, pertencem principalmente à subfamília Telmatogetoninae (uma espécie de Thalassomyia e quatro de Telmatogeton), além de uma única espécie da subfamília Orthocladiinae (Clunio). Há também o curioso registro de Pontomyia descrito adiante. Vivem na zona entre-marés, associados a bancos de algas.
Telmatogetoninae, provável Telmatogeton sp., coletado em um banco de mexilhões, em São Sebastião, SP. Fotos cortesia de David Bogdanski.
Chironominae,
larvas, pupas e o mosquito adulto, encontrados em um riacho que
desaguava no mar, em água salobra, na Praia de Itaguaré, Bertioga, SP. Fotos de Walther Ishikawa.
Existe ainda uma espécie chamada de “Marine Midge” (Pontomyia
spp., Chironominae) que pode ser considerada verdadeiramente marinha. São encontrados em
litorais tropicais e subtropicais do Indo-Pacífico, Singapura e Caribe. Há um único registro brasileiro de larvas encontradas no Atol das Rocas, RN. Suas
larvas habitam poças de maré, na areia e bancos de algas, há registros até em
corais a 30 m. de profundidade. Já foram encontrados até em algas nos cascos de
tartarugas marinhas. Os adultos são bastante bizarros, as fêmeas não têm boca,
asas ou antenas, possuem apenas um par de pernas, que não passam de cotos. Os
machos também não têm boca, e suas asas são tão pequenas que não conseguem
voar. Porém, vibrando suas asas, os machos deslizam na superfície da água com o
seu primeiro par de pernas extremamente longas servindo de estabilizadores.
Após completada a metamorfose, as pupas flutuam até a superfície, a
eclosão é sincronizada, influenciada pela maré, pôr-do-sol e fases da Lua. Uma
espécie (P. oceana) só surge na Lua
Nova ou Lua Cheia. Ao entardecer, machos emergem em massa, o que de alguma
forma desencadeia a eclosão das fêmeas uma hora após. A urgência de se
reproduzirem é tanta, que alguns machos tentam copular com fêmeas antes mesmo
destas emergirem totalmente da pupa. Quando o macho encontra a fêmea, ocorre a
copulação, conectando as extremidades dos seus abdomens, o macho arrastando a
fêmea enquanto ele caminha na superfície do mar. Terminada a cópula, o casal se
destaca, e o macho vai procurar outra fêmea. A fêmea deposita uma fileira de
ovos adesivos, que afunda e se fixa a um pedaço de coral ou outro objeto
sólido. Os adultos morrem pouco após a reprodução, todo o processo reprodutivo
é ridiculamente curto, o período desde a emergência da pupa até a morte dura
somente 1 a 2 horas.
Pontomyia natans macho, foto de Danwei Huang, extraído de World Register of Marine Species (Licença Creative Commons).
Águas Ácidas: Algumas espécies do gênero Tanytarsus são encontradas em ambientes
com pH extremamente baixo, como córregos contaminados com resíduos de minas
ácidas. Outro registro impressionante da capacidade de sobreviver a ambientes
extremos é o encontro de larvas vivas da espécie Chironomus salinarius em excreções frescas da ave migratória Maçarico-de-bico-direito
(Limosa limosa), presumivelmente
ingeridas pelas aves e sobrevividas ao sistema digestório da ave vivas. Não é
propriamente uma adaptação a um ambiente, e somente uma minoria de larvas
encontradas nas fezes estavam vivas, mas ilustra o quão robustas estas
criaturas podem ser.
Para a quarta e última parte do artigo, incluindo Bibliografia e créditos fotográficos, veja a página seguinte aqui.