Artigo publicado em 11/02/2012, última edição em 22/10/2023
Ostracóides e outros microcrustáceos (segunda parte)
Aqui abordaremos os outros dois grandes grupos de microcrustáceos, os Cladóceros (Pulgas d´água) e Copépodes (Cíclopes e outros). Para retornar à primeira parte do artigo, cliqueaqui.
Pulgas d´água
As Pulgas d´água pertencem à ordem Cladocera, fazem
parte da classe Branchiopoda juntamente com os Concostráceos, Triops,
Artêmias e Branconetas. Chamados por alguns de “pequenos branquiópodos”, os
cladóceros são os mais evoluídos, com maior número de espécies e maior
diversificação ecológica. Estima-se em cerca de 600 espécies no mundo (e 150 no
Brasil).
São diminutos crustáceos com um aspecto ovóide,
podendo ser confundidos com os Ostracóides. Seu tamanho também é semelhante, geralmente
entre 0,2 a 3,0 milímetros, e possuem uma carapaça única, dobrada na porção
dorsal, dando a impressão de uma estrutura bivalve. Esta carapaça encerra quase
todo o organismo, exceto a cabeça. Olhando com cuidado, são visíveis duas
longas antenas lateralmente na cabeça, usadas para natação, quando vistos de
frente parecem dois braços abertos para o lado. A cabeça pode ter também uma
curta antênula, bastante útil para identificar Daphnidae (ausência de antênulas,
ao contrário de Moinidae, Macrothricidae e Ilyocryptidae). Assim como os
Copépodos, possuem um único olho composto escuro. Pode haver um espinho na
extremidade da cauda, como nos Daphnia.
Ao contrário dos Ostracóides e Copépodos, a grande
maioria das espécies de Pulgas d´água vive em água doce. Habitam diversos
ambientes, com variados graus de oxigenação, salinidade e poluição. Têm a capacidade de sintetizar Hemoglobina, o que confere grande resistência a ambientes hipóxicos. Embora a
maioria dos Cladóceros tenha hábito rastejador ou bentônico, o aquarista terá
provavelmente mais contato com as espécies maiores da família Daphnidae, predominantemente
planctônicas. A família Moinidae (as pequenas Moina) também são bem
comuns em aquários. Seu nado é típico, e bem diferente dos Ostracóides.
Nadam à meia água com movimentos rítmicos, saltitantes. Há também organismos
que vivem na superfície da água, alimentando-se de algas hiponeustônicas, como Scapholeberis,
e até ectoparasitas de Hidras, como o Anchistropus. São totalmente
inofensivos, se alimentando de detritos, algas, bactérias e rotíferos, os quais
são filtrados com as finas cerdas dos seus apêndices torácicos. Não destroem
plantas.
É um animal bastante prolífico, de fácil cultivo e
rápido desenvolvimento, um popular alimento vivo em aquarismo. Em geral a população
é constituída somente por fêmeas, com reprodução assexuada por partenogênese
diplóide por várias gerações, o número de ovos variando de 2 (Chydoridae) a
mais de 20 (Daphnidae), depositados em uma câmara interna dorsal das fêmeas,
visíveis no seu corpo transparente. Maturidade sexual entre 4 a 7 dias, reproduz a cada 1,5 a 2 dias (2 a 6 ninhadas durante a vida). Desenvolvimento direto, os filhotes já
nascem com aparência semelhante aos adultos, e são liberados logo antes da
ecdise. Após a ecdise, a fêmea libera um novo conjunto de ovos na câmara. Porém,
quando as condições ambientais se tornam desfavoráveis, a produção
partenogenética cessa e são produzidos machos e fêmeas sexuais. Estas últimas
produzem um ou dois ovos haploides, após fertilizados são envoltos por uma
cápsula protetora (ovos de resistência), de coloração opaca e escura, que são
liberados na muda juntamente com parte da carapaça, formando uma estrutura
chamada efípio. São resistentes a ressecamento, congelamento e a passagem
pelo intestino de animais, se desenvolvendo quando as condições tornarem-se
favoráveis novamente. Recentemente (2014), foi eclodido um efípio de uma
espécie de Daphnia de um lago em
Minnesota com idade de 700 anos! Devido à sua resistência, o efípio é também
uma importante estrutura de dispersão. Alguns afundam e se misturam ao
sedimento, outros flutuam, e alguns podem se aderir a pelos e penas, e são
carregados por grandes distâncias. Leves, podem ser dispersados também pelo
vento.
Pulga d´água Daphnia
sp. Fotos de Chantal Wagner.
Pulga d´água Simocephalus cf. serrulatus. Note os ovos em diversos graus de desenvolvimento, alguns já com pequenos olhos escuros visíveis. Fotografados em Vinhedo, SP. Fotos de Walther Ishikawa.
Daphnia
sp. juntamente com ostracóides Chlamidotheca arcuata (duas primeiras fotos) e Strandesia bicuspis (última), exemplares gentilmente cedidos por Max Wagner, de Marília, SP. Fotos de Walther Ishikawa.
Provável Ceriodaphnia
sp. coletado em Nazaré Paulista, SP. Seus ovos/larvas foram acidentalmente coletados juntamente com larvas de mosquito, em uma pequena poça d´água no solo lamacento, que se formou numa marca de pneu. Provavelmente trata-se de uma espécie que vive em lagos temporários, com ovos resistentes à dessecação. As últimas fotos mostram prováveis efípios no interior de alguns animais. Fotos de Walther Ishikawa.
Mais imagens do mesmo provável Ceriodaphnia, note os ovos no interior de alguns animais. As últimas imagens mostram o efípio, inclusive livre na água. Fotos de Fernando Barletta.
Pequena
pulga d´água junto a um Iriatherina. Foto de Peter McGuire (Planet Inverts).
Diminutas pulgas d´água do gênero Chydorus. Na terceira imagem são visíveis também protozoários ciliados Stentor. Fotos de Fernando Barletta.
Copépodes
Quando se fala informalmente de “Copépodos” em
aquários de água doce, geralmente nos referimos aos Ciclopóides (ordem Cyclopoida),
pequenos e de vida livre, os gêneros mais conhecidos são os Cyclops e
afins (Mesocyclops, Paracyclops). Têm este nome por possuírem um
único olho. Na realidade os Copépodos são um grupo bem mais amplo (crustáceos
da subclasse Copepoda), é
a maior e mais diversificada entre os crustáceos, com cerca de 12.000 espécies
conhecidas, destas, 7500 de vida livre, 1200 de águas continentais. Muitas espécies são parasitas, só
lembrando que o Argulus (Piolho-de-peixe) e a Lernaea
(Verme-âncora) são espécies de Copépodos. Mas possuem uma morfologia diferente,
adaptada à sua vida parasitária.
Estes crustáceos são muito mais freqüentes no mar,
onde sua população perfaz um dos grupos animais com uma das maiores biomassas
do planeta, e superando
em número de indivíduos até os insetos. Em água doce, habitam os mais variados ambientes,
desde lagos alpinos, boreais, e até rios subterrâneos. Com os Cladocera,
são os grupos mais representativos de microcrustáceos de água doce. Raros são semi-aquáticos, habitando terras úmidas. Os copépodos de
águas continentais são menos diversificados que os de água salgada, com somente
cinco ordens principais: Cyclopoida
(cerca de 101 espécies brasileiras), Poecilostomatoida (57, até recentemente
incluída em Cyclopoida),Calanoida (58), Harpacticoida
(56) e Gelyelloida (sem representantes no Brasil), os três primeiros são planctônicos,
os Harpacticoida bentônicos e os Gelyelloida, próprios de águas intersticiais
profundas.
Os Ciclopóides têm um formato bem típico, sendo
facilmente identificados com uma lupa. Seu corpo tem um aspecto alongado, com o
formato de uma gota, com cabeça arredondada e uma cauda pontuda. Duas grandes
antenas saem da cabeça, usadas para natação, e muitas fêmeas têm duas
estruturas ovóides alongadas (saco de ovos) fixas na parte lateral do corpo,
parecendo um “Y” invertido. Visto uma vez, seu formato é inconfundível. Suas
dimensões são semelhantes aos demais animais abordados neste artigo, medindo
até alguns milímetros. São ótimos nadadores, com um padrão de nado bem típico,
se deslocando agilmente em movimentos irregulares de zigue-zague, usando suas
antenas como potentes remos (só como curiosidade, Copépodo significa
“pé-de-remo”).
Os Cyclopoida têm hábito capturador e em geral são
onívoros. Algumas
espécies são vorazes predadores, mas geralmente não oferecem perigo aos animais
do aquário, devido ao seu diminuto tamanho. Entretanto, eventualmente um ciclopóide
adulto pode predar um alevino pequeno, ou uma larva de camarão ornamental.
Algumas espécies de Mesocyclops são usadas na Ásia como agentes de
controle biológico, predando larvas do mosquito Aedes. Pode também
ocorrer canibalismo.
Para a saúde humana também é importante
destacar a doença Dracunculose transmitida por Cyclopoida do gênero Mesocyclops, hospedeiros do parasita Dracunculus medinensis que ocorre na
África, Paquistão e Índia. Não há registros no Brasil. Como curiosidade, no Bastão
de Esculápio, símbolo da medicina, as duas serpentes enroladas no cajado
representam provavelmente este verme parasita.
A reprodução dos Copépodes é principalmente
sexuada, em geral as fêmeas carregam sacos de ovos aderidos ao abdômen. Passam por diversos
estágios de desenvolvimento, as minúsculas larvas (náuplios) não se parecem com os adultos, são
triangulares com três apêndices, passando por várias mudas até se metamorfosear
num adulto.
Um casal
de Copépodes. Foto de Walther Ishikawa.
Um casal de copépodes sob luz
polarizada, a fêmea na primeira imagem, com seu saco de ovos. Fotos de Daniel
Stoupin.
Copépodes de grandes dimensões, coletados na Represa de Guarapiranga, São Paulo, SP. Fotos de Fernando Barletta.
Copépode ciclopóide de grandes dimensões (3 mm), encontrado em Ribeira do Pombal, BA. Fotos cortesia de Miguel Macedo Luz Vieira.
Fêmea de Cyclops em visão lateral, um dos ovos acabou de eclodir, liberando um náuplio. Darkfield x100. Fotos de John C. Walsh.
Bem mais raramente, podem ser vistos os Copépodes
das ordens Calanoida e Harpacticoida.
Mais incomuns do que os Cyclopoida, os Calanoida
são caraterizados pelas suas longas antenas secundárias, as fêmeas carregam
somente um saco de ovos mediano (são dois laterais nos Ciclopóides), ou
depositam-nos diretamente no substrato. Corpo alongado, em forma de torpedo. As
antênulas das fêmeas são simétricas, enquanto que a direita do macho é
modificada, para se prender à fêmea durante a cópula. Calanoida são
comumente filtradores, herbívoros ou onívoros, alimentando-se de algas,
bactérias, pequenos animais e ocasionalmente de detritos. Têm uma distribuição
geográfica mais restrita que os Cyclopoida, apresentando muitos endemismos e
ocorrendo em uma estreita faixa longitudinal. A região Amazônica possui a mais
rica fauna deste grupo, assim como o maior endemismo, com cerca de 58% das
espécies conhecidas. Habitam locais menos eutrofizados do que os Cyclopoida.
Harpacticoida é um grupo essencialmente marinho,
mas com poucas espécies também em água doce. São descritas 56 espécies
brasileiras. Muito menores do que os dois grupos anteriores, têm um
comportamento bem mais bentônico, vivendo em meio ao substrato, plantas
submersas ou aderido à superfície de rochas. Suas pequenas antenas não permitem
que nadem bem. Muitas espécies são subterrâneas. No aquário, passam boa parte
do tempo caminhando nos vidros. Possuem corpos mais alongados do que os
Ciclopóides, com o cefalosoma mais curto proporcionalmente do que o metasoma
(abdomen), mostrando uma segmentação mais evidente. Diferente dos Ciclopóides,
não têm o cefalosoma mais largo (o que dá o aspecto em "gota").
Tipicamente, quando comparados aos Ciclopóides, têm antenas mais curtas e ramos
caudais mais longos. As fêmeas carregam somente um saco de ovos mediano.
Diminutos copépodes Calanoida, filmados em um aquário, coletados em lagoas efêmeras de Ribeira do Pombal, BA. Vídeos cortesia de Miguel Macedo Luz Vieira.
Montagem com uma fêmea Diaptomus, um copépode Calanoida. Darkfield x45. Fotos de John C. Walsh.
Copépodes
Harpacticoida, surgiram em um aquário em Avaré, SP. Vídeo cortesia de Mateus Giovanni.
Copépodes Harpacticoida, surgiram em grande número em uma criação de Tubifex. Fotos e vídeo de Walther Ishikawa. Exemplares gentilmente cedidos pelo aquarista Edilson Lopes.
Copépodes Cyclopoida e Harpacticoida. Fotos de Fernando Barletta.
Copépodes Harpacticoida que surgiram em um aquário. Fotos e vídeo de Fernando Barletta.
Apareceram
esses bichinhos no aquário. Devo me preocupar?
Para os peixes, crustáceos e moluscos ornamentais,
quase todos estes “bichinhos” são totalmente inofensivos. Em aquários de
reprodução, talvez os Copépodos maiores possam representar
algum perigo, especialmente para crustáceos com reprodução larvar, mas é
bastante improvável. Há alguns relatos de predação com Ostracóides, conforme mencionado no parágrafo específico.
Semelhante aos vermes oligoquetas, todos estes
animais são ótimos indicadores de desequilíbrio. Sendo
animais detritívoros, havendo excesso de matéria orgânica (ou seja, alimento
disponível), haverá uma reprodução descontrolada destes seres, com explosões
populacionais. A causa pode ser uma superpopulação do aquário, alimentação
excessiva, algum animal morto oculto, ou filtragem insuficiente. Controlada a
causa, são surtos auto-limitados, não necessitando outras condutas.
Estes animais não oferecem nenhum perigo a nós,
aquaristas. Como mencionamos, existe uma doença humana africana que envolve Copépodes, mas não
ocorre no nosso país, e depende da ingestão acidental de animais vivos.
Um último lembrete importante: Pulgas d´água e
Copépodos são populares alimentos vivos, fáceis de serem criados, e avidamente
devorados pelos peixes. Porém, estes animais também são hospedeiros
intermediários de vários parasitas de peixes, alguns bastante importantes, como
o verme nematóide Camallanus. Desta forma, nunca forneça animais
coletados a seus peixes. Animais coletados podem ser usados como inóculos para
as suas culturas, mas é necessário aguardar algumas gerações (semanas a alguns
meses) para se certificar de não estar introduzindo estes parasitas junto com
os alimentos vivos.
Veja a Bibliografia, créditos fotográficos e agradecimentos no link aqui.