Artigo publicado em 12/09/2018, última edição em 16/11/2023
Lepidópteros aquáticos
Lepidoptera
(Borboletas e Mariposas) é a segunda maior ordem de insetos, com cerca de
160.000 espécies descritas. Suas asas são cobertas por escamas largas e
sobrepostas, muitas vezes com um belo colorido, daí seu nome (lepidos =
escama; pteron = asa). Sendo um grupo de insetos primariamente
terrestre, pode causar surpresa a muitos a existência de formas perfeitamente
adaptadas a ambientes aquáticos (até 5% do total de espécies!). Não existem Borboletas aquáticas, porém diversas
Mariposas têm formas imaturas que se desenvolvem na água, com graus variados de
adaptação. Muitas constroem casulos, somente com seda, ou com folhas e
gravetos, podendo ser confundidos com Tricópteros. Porém, seus abrigos tem um
aspecto menos elaborado e mais "desleixado", incorporando grandes
pedaços de folhas cortadas de forma mais grosseira, ou um amontoado de gravetos
finos arranjados longitudinalmente, suas peças fixadas de uma
forma mais frouxa. Recentemente algumas espécies têm ganhado maior atenção, ou pelo seu caráter de pragas agrícolas e de plantas ornamentais, ou pelo potencial uso como agentes de controle biológico de plantas aquáticas daninhas.
Lagartas Parapoynxque surgiram em um aquário, em Belo Horizonte, MG. Fotos de Cássio Alencar Nunes.
A maioria dos artigos menciona de sete a oito
famílias de lepidópteros com representantes aquáticos neotropicais. Porém,
decidimos não incluir neste artigo aquelas espécies com larvas que simplesmente
se alimentam de plantas aquáticas (embora algumas destas lagartas minadoras tenham alguma capacidade limitada de submersão), que são chamadas por alguns de semi-aquáticas. Desta forma, não serão descritas
aqui as famílias Pyralidae, Sphingidae, Noctuidae, Nepticulidae,
Colephoridae, Cosmopterygidae, Momphidae e Tortricidae. Assim, temos
somente duas famílias, Erebidae e Crambidae, quase a totalidade das espécies
conhecidas de lagartas aquáticas pertencem à segunda família.
Suas lagartas lembram espécies terrestres, com
aspecto alongado, glabro e flácido, cabeça proeminente, arredondada e
esclerotizada, três pares de pernas articuladas nos segmentos torácicos, e
falsas-pernas macias nos abdominais. Podem ter brânquias externas ou
não, simples ou ramificadas, fato que auxilia bastante sua identificação.
Família Crambidae tem ampla
distribuição, com mais de 600 espécies descritas. Previamente era considerada
uma subfamília de Pyralidae. Existem 11 subfamílias presentes na América
do Sul, cinco com espécies aquáticas ou semiaquáticas, se forem incluídas
espécies minadoras de plantas aquáticas.
Espécies verdadeiramente aquáticas
pertencem somente à Subfamília Acentropinae (inclui
a antiga Nymphulinae), com
lagartas bastante adaptadas a viverem submersas. No Brasil estão registradas
cerca de 50 espécies, dos quais seis gêneros são sabidamente aquáticos. Muitos autores ainda dividem as espécies aquáticas em
duas tribos, Nymphulini e Argyractini, de habitats distintos, embora sem suporte filogenético.
Lagarta de Elophila / Synclita fulvalis, fotografada na Lagoa Encantada, Vale Encantado, Vila Velha, ES. A última foto mostra um Crambídeo fotografado no mesmo local, possivelmente da mesma espécie. Imagens gentilmente cedidas
por Flávio Mendes.
Lagarta de Parapoynx, surgiu em um aquário em Curitiba, PR. Note suas traqueobrânquias ramificadas. Imagens cedidas
por Solange Nalenvajko.
Lagarta Parapoynxque surgiu em um aquário em Belo Horizonte, MG. Foto de Léo Gomes.
Tribo
Nymphulini estão
geralmente associadas a ambientes lênticos ou a áreas marginais de rios, sempre
relacionadas a hidrófitas, das quais se alimentam e retiram material para a
elaboração de casulos. Podem ser lisos e com poucas ornamentações (Elophila / Synclita), ou apresentar traqueobrânquias ramificadas (Parapoynx).
Há alguma controvérsia na taxonomia do gênero Elophila ou Synclita, geralmente são considerados sinônimos. Há registro oficial de uma única espécie no Brasil, Elophila / Synclita fulvalis. Como mencionado, esta lagarta possui o corpo liso e sem ornamentações, e sem traqueobrânquias. Hábitos anfíbios, vive em macrófitas dos quais se alimenta, junto à superfície da água. Constrói abrigos com duas folhas recortadas e coladas com seda, sendo por isso chamado popularmente em inglês de "sandwich man". Abrigos de lagartas menores são fixos às plantas, e preenchidas por água, a larva tendo respiração cutânea. Abrigos de lagartas maiores são preenchidas por ar, e têm modo de vida livre, geralmente emerso. Novos abrigos são construídos à medida que a lagarta cresce. Muitas espécies são pragas de plantas aquáticas, mais comumente Ninféias, por isso sendo chamadas em inglês de "waterlilly leafcutter".
Lagarta do Crambídeo Elophila / Synclita fulvalis, o mesmo exemplar das fotos acima, confeccionando o abrigo em laboratório. Fotos gentilmente cedidas por Flávio Mendes.
Parapoynx é o gênero mais comum de mariposas com lagartas verdadeiramente aquáticas, representado no Brasil por duas espécies, P. stagnalis e P. restingalis. A primeira é uma espécie invasora, com grande importância econômica no Sul do Brasil como praga de arrozais. Chamada de lagarta-boiadeira, Parapoynx stagnalis (previamente classificada como Nymphula
depunctalis e Nymphula indomitalis, boa parte da lieratura brasileira ainda usa esta classificação antiga) tem ampla distribuição no globo, sendo encontrada também na Ásia, Africa, Europa e Oceania. São pequenas mariposas brancas, com envergadura
aproximada de 15 mm, e pousam normalmente de asas abertas. Embora voem durante
o dia, as mariposas são de hábito noturno, período em que se
reproduzem. Os adultos têm vida curta, e não se alimentam. Ovos são
depositados com rápidos mergulhos dos adultos, agrupados na parte de baixo de
folhas que estejam boiando na superfície d'água.
As lagartas atingem cerca de 20 mm de comprimento,
apresentam coloração verde-clara translúcida, com cabeça marrom-clara,
proeminentes brânquias filamentosas traqueais. Um aspecto bem característico
destas larvas é o fato de construírem abrigos em forma de cartucho recortando
folhas, e colando-as com seda, semelhante aos Tricópteros. Quando termina
seu abrigo, este cai e boia na água com a lagarta no seu interior - daí o nome
de lagarta-boiadeira. Os cartuchos, flutuando sobre a água, são espalhados por
grandes distâncias. Para se alimentar, as lagartas não abandonam o cartucho e
sobem nas plantas com as pernas dianteiras, preferencialmente à noite. Por
dentro, o cartucho é revestido por uma camada de seda que retém um fino filme
d'água, essencial para a respiração da lagarta, bem como prevenir a sua
dessecação. A cada mudança de estágio (instar), a lagarta corta um cartucho
maior. Durante o primeiro e segundo estágios, mais do que uma lagarta pode
habitar um mesmo cartucho, porém, nos estágios subsequentes, somente uma
lagarta é encontrada em cada cartucho. A pupação se dá dentro do cartucho, que
é previamente fechado e preso em alguma estrutura, geralmente acima da linha d'água.
A pupação pode ser submersa, em casulos fixos em plantas e outros objetos
aquáticos. Os abrigos têm dois compartimentos, separados por uma parede móvel.
A larva permanece no compartimento alagado, mas depois da pupação, passa para o
compartimento seco, onde a crisálida termina seu desenvolvimento. Em muitas o
cremaster (ápice do último segmento abdominal) é unciforme, possibilitando a
ancoragem da larva no casulo de seda. Quando a mariposa adulta emerge, ela
aproveita o impulso das bolhas de ar aderido ao seu corpo para subir até a
superfície.
Mariposa adulta da lagarta-boiadeira Parapoynx stagnalis, fotografada em Campeche, Florianópolis, SC. Foto cortesia de Kahio T. Mazon.
Tribo Argyractini estão presentes em ambientes de água mais rápida, e apresentam traqueobrânquias filamentosas, não ramificadas. Muitos adultos têm manchas escuras na margem posterior das asas posteriores, acredita-se que se trate de mimetismo de aranhas Salticidae.
Um representante típico deste grupo é o gênero Petrophila, amplamente distribuído na América do Sul. São mais comuns em águas correntes, onde vivem sobre rochas, raspando algas e diatomáceas na sua superfície, com modo de vida relativamente sedentário. Usam casulos de seda como abrigo, ovos são depositados na superfície de rochas. São mais achatadas, adaptadas a correnteza, e possuem a cabeça também achatada, prognata e com mandíbulas proeminentes, dentes dispostos de forma plana, adaptados para raspar seu alimento. As brânquias são somente laterais, e de distribuição uniforme.
Há mais três gêneros no Brasil, que preferem águas mais calmas, associadas a macrófitas flutuantes (Oxyelophila) ou raízes (Argyractis e Neargyractis). Sua morfologia lembra mais os Nymphulini, com corpo cilíndrico, cabeça arredondada, hipognata. As brânquias são difusas pelo seu corpo, com diferentes distribuições, sendo usada para identificação dos gêneros. Alguns utilizam material vegetal na elaboração dos casulos, como Argyractis.
Larva de Petrophila sp., fotografada em Puerto Vallarta, Jalisco, México. A segunda foto mostra a lagarta na face inferior de uma rocha que estava submersa em um rio. Fotos cortesia de Martínez-Pérez Christian Saul.
Lagarta aquática Argyractis, encontrada em meio a macrófitas no Rio Itapicuru, em Cipó, BA. A mariposa adulta surgiu em um aquário onde haviam macrófitas coletadas. Vídeos e fotos de Miguel Macedo Luz Vieira.
Larva de mariposa Crambidae Parapoynxque surgiu em um aquário. Note as traqueobrânquias, fotos de Pedro Rodriguez.
Lagartas aquáticas Parapoynx surgiram em um aquário comunitário em Diadema, SP. Fotos e vídeo de Ana Caroline de Oliveira.
Família
Erebidae é a família mais rica em espécies de Lepidoptera, com cerca
de 24.600 espécies. Análises filogenéticas recentes subordinaram as clássicas
famílias Arctiidae e Lymantriidae a esta. Até o presente, quatro espécies do
gênero Paracles (previamente Arctiidae) apresentam hábitos aquáticos, dois
deles com registro no Brasil (em AM, MA e MG), alimentando-se de hidrófitas submersas, e nadando ativamente enquanto submersas com movimentos ondulatórios. São lagartas enegrecidas e urticantes, não apresentam traqueobrânquias e a respiração é aérea, realizada mediante um
plastrão (bolsão de ar) formado por cerdas hidrófobas. Empupam em um casulo de seda hidrofóbica e flutuante.
Lagarta de Paracles azollae, fotografada em Sierra de los Padres, General Pueyrredón, Buenos Aires, Argentina. Foto gentilmente cedida por Lucas Rubio.
Lagartas de Paracles klagesi, fotografadas em laboratório, exemplares coletados em Uberlândia, MG. Foto gentilmente cedida por Iasmim Pereira de Freitas.
Embora
não seja uma mariposa aquática, escolhemos incluir esta espécie no nosso artigo
porque muito frequentemente elas são encontradas associadas a riachos e
cachoeiras. São belas mariposas coloridas e com um visual inconfundível, asas
translúcidas amarelas e marcações cinza-metálicas com um contorno preto e um
centro preto, em forma de anel, lembrado uma onça ou leopardo. São da família
Geometridae, com lagartas chamadas de mede-palmos, com seu típico padrão de
flexão e extensão ao caminhar (o nome da família vem do grego, "geo"
= solo, terra, "metra" = medir). São encontradas desde o México até a
Argentina, no Brasil são mais comuns nos estados do Sudeste e Sul. No Brasil
também ocorre a espécie Pantherodes colubraria, muito parecida, mas mais incomum.
Pantherodes pardalaria,
fotografadas em um riacho do Vale do Ribeira, SP. Foto de Foca Afonso.
Suas
lagartas se alimentam vorazmente de folhas de Urtiga (família Urticaceae), que
possui ácido fórmico, dentre outras substâncias, que confere seu caráter
urticante. Estas substâncias permanecem na lagarta, e talvez nas mariposas
adultas, explicando sua coloração aposemática. No antigo México, as lagartas
eram usadas como alimento pelos Astecas, e ainda hoje são usadas por alguns
povos com supostas propriedades medicinais.
Adulto e lagarta de Pantherodes pardalaria,
fotografados em Teresópolis, RJ. Imagens cortesia de Antonio Carlos Fiorito Junior.
O
alimento principal de lepidópteros adultos é o néctar das flores. Especialmente
nas selvas tropicais, onde flores são mais escassas, as borboletas e mariposas
ampliam seus hábitos alimentares e incluem frutas em decomposição, excrementos,
carcaças, seivas e etc. Muitas espécies são vistas aglomeradas em solos úmidos,
consumindo a água barrenta em busca de sais e nutrientes, hábito chamado em
inglês de "puddling" ou "mud-puddling". Estas aglomerações
são chamadas no Brasil de Panapanã. Curiosamente, estas aglomerações são
constituídas quase que exclusivamente de machos jovens, que necessitam de
grandes quantidades de sódio para o processo reprodutivo. Podem pousar sobre os
nossos corpos, em busca de sódio do nosso suor. Várias belas fotografias
mostram estas borboletas alimentando-se de lágrimas de jacarés e tartarugas no
Amazonas ou Pantanal. Existem até mariposas noturnas que se alimentam
exclusivamente de lágrimas (a asiática Lobocraspis griseifusa), e uma espécie hematófaga (Calyptra eustrigata, também asiática).
Panapanã de pierídeos encontrado em
um banco de areia, às margens do Rio Itajaí, RPPN Raso do Mandi, Itaiópolis, SC. Imagem cedida
por Germano Woehl Jr. (Instituto Rã-bugio para Conservação da Biodiversidade).
O Pantherodes parece
necessitar de um aporte ainda maior de água, sendo encontrado perto de córregos
e riachos, frequentemente repousando em rochas e folhas parcialmente submersas, e bebendo água diretamente das margens. Este hábito já é documentado desde 1883
por Dukinfield-Jones, que acompanhou um exemplar no Brasil bebendo água por
três horas, ingerindo um quantidade de cerca de 200 vezes seu volume, eliminado
o excesso de líquido pelo ânus, muitas vezes com vigorosos jatos. Há descrição
de outras mariposas norte-americanas com comportamento semelhante (como o
Notodontidae Gluphisia septentrionis, 510 vezes seu volume), o motivo de tal comportamento ainda não foi
totalmente elucidado.
Grande agrupamento de Pantherodes pardalaria,
filmado em um riacho no interior do Rio Grande do Sul, vídeo
gentilmente cedido pela equipe do Grupo do FaceBook "Insetos do Brasil"
(veja no link).
Embora o Pantherodesnão seja uma espécie aquática, existem alguns relatos
curiosos, como do nosso colaborador Germano Woehl Jr. (Instituto Rã-Búgio): no
Rio Itajaí (Itaiópolis, SC), após se assustar com a sua presença, esta mariposa
mergulhou em um riacho e emergiu em pleno vôo cerca de dois metros adiante.
Pantherodes pardalaria,
fotografada em um riacho do Parque Do Jaraguá, SP. Foto de Walther Ishikawa.
Para bibliografia, créditos fotográficos e agradecimentos, cliqueaqui.